sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

a assiduidade perdeu-se no labirinto do tempo


Desapareceu das coordenadas do mapa
a capa
das virtudes.
Sem graus de latitudes, nem longitudes,
a escala
refez a mala...
e o papel empobreceu-se culpando a solidão.


A entrada, solene, não tinha porta,
morta
pela saída,
que por mero engano lhe tirara a vida.
Ausente,
incongruente
retirara do tempo e do espaço a noção.


A saída é o engodo, o objectivo, o golo,
do subsolo...
as paredes:
transposições transparentes de sedes
de conforto;
dores sem porto
partem-se, do choque com a (des)ilusão.


Chegou, no exacto momento de abalar,
onde não devia estar...
seguia os nanos,
os picos, os micros e as milésimas dos anos.
Perdida,
incompreendida;
avançava sem parar, nesta nossa invenção.






quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

definição de milagre

Tenho de tomar um café! - pensei para com os meus botões naquela tarde de inverno.
Na Damaia chovia aquela chuva doentia que todos molha e ninguém toca. O frio tornava-me consciente de que havia vapor de água agarrada ao ar que respiramos, pelo simples facto de poder vê-lo, como se fumasse.
Eu estava toldado pela minha habitual sonolência pós-prandial e motivado pela crua dependência de cafeína. A diferença entre a casa dos meus pais e o café Lindóia era uma subida fácil de se fazer, ladeada por prédios incolores, uma tasca, uma mercearia e a Igreja local.
Algumas almas circulavam de chapéu-de-chuva aberto, outras andavam descobertas olhando o céu amiúde, com a incerteza. Agasalhos de cores frias completavam o mosaico. A calçada parecia acabada de encerar e o alcatrão sobejante reflectia a luz solar com jeitos de espelho de circo.
De olhar no chão, que me acentuava a lordose postural, pensava, com a expectativa de desejo frustrado, no sabor do café adoçado com os oito gramas de sacarose. Caminhava a passo de corrida quando uns gritos de criança me despertaram para fora do meu umbigo.
Perto do adro da Igreja estavam um grupo meio concentrado meio disperso de infantes, que soube serem de um centro de actividades e tempos livres, pela presença de duas educadoras de bata a um canto a conversar e a fumar. O grupo disperso era composto por várias meninas e alguns rapazes entre os sete anos que inventavam jogos, ou conversavam entre si.
Do grupo concentrado surgiam os bramidos, intercalados com urros e injúrias. Parei sem estar verdadeiramente incomodado com o ruído, mas com a apatia das educadoras com E minúsculo.
Dos quinze que inteiravam o magote havia um arruivado chamado Pedro que vestia roupas simples de marca da praça, agarrado a uma bola de futebol como à própria vida. Entendi que era sua; talvez uma prenda de Natal dada pelo Pai, que só via quinzenalmente aos fins-de-semana por indicação judicial. Os outros cercavam-no, infelizes, por verem goradas as hipóteses de jogarem com uma bola nova, agredindo o causador de tal miséria. O mais diligente de todos era o Mário. O Mário iria fazer anos em princípios de Abril, e talvez por isso era o mais alto, corpulento e velho deles. Assim como a Mãe do Pedro, a do Mário também ia às compras à praça da Damaia.
Resolvi tomar uma atitude quando entre o Pedro e o Mário, de repente, desenvolveu-se um estranho corpo-a-corpo pela posse do esférico.
Entre as educadoras, nem um olhar...
Sem tocar em nenhum deles, e notando alguma intimidação nos miúdos pelo meu tamanho e condição de adulto, afastaram-se ordenados monstrando educação.
Perguntei ao Pedro se lhe podia contar um segredo. Este anuiu sem mostrar medo. Disse delicadamente que se ele permitisse o jogo, no final os outros lhe devolveriam a bola intacta, uma vez que era sua. O Pedro exigiu uns instantes para assimilar a informação, largou a bola e sorriu.
A bola circulou irrequieta entre todos.
No mesmo tempo que levou o Pedro a se decidir, pude ouvir o Mário gritar incandescente, a plenos pulmões:
- Milagre! Milagre!

E segui para ir beber o meu café.